5 de jan. de 2019

CORPOS SUBMISSOS E PRECARIZAÇÃO DA VIDA


(ou porque as diferentes “falas” na Nova Ordem formam um só discurso – Parte I)

Rafael, 05/01/2019

Manifestantes em protesto no RJ, 2013 - Foto: Isabela Marinho / Portal G1


O exercício militar de “ordem unida” é uma das metáforas mais eloquentes da submissão dos corpos, assim como as antigas aulas de Educação Física, como as que eu tive no ciclo dos antigos primário, ginásio e colegial. Corpos uniformizados, movimentos sincronizados, marciais, obedientes a uma “voz de comando”.

Um vídeo do IPHAN sobre a Cachoeira Iauaretê traz uma sequencia de imagens significativas: missionários salesianos ministrando exercícios de ginástica, “polichinelos” para ser mais exato, a um grupo imenso de crianças indígenas, todas alinhadas em fileiras e usando uniforme branco, isso lá pelo final dos anos 1920. A Ordem exige que os corpos sejam uniformes, pois deixados livres trazem sempre a ameaça da subversão e da indecência indisciplinada.

As corporeidades construídas socialmente, conversões da natureza em cultura, devem, sobretudo, submeter-se à vontade do Outro. Não é permitido “fazer corpo mole”, nem “tirar o corpo fora”. Sempre bom relembrar Michel Foucault: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos 'dóceis'. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”.[1]

“Mente sã em corpo são”, armadilha retórica: sobriedade e postura para obedecer e movimentar-se conforme as regras e o tempo da utilidade e da produtividade. Engano pensar que a etapa da “acumulação flexível” dispensou a corporeidade e a temporalidade fordista no chão de fábrica, na construção civil, nos chamados serviços gerais, nos escritórios, no trabalho, enfim, há sempre a “verdade fisiológica” da qual fala Marx n’ O Capital, o trabalho como “essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. humanos”[2].

É necessário interpretar expressões como “trabalhar o corpo” (to work out): modelar, modelo, padrão, ou a terrível “no pain, no gain”, é imperativo submeter o corpo ao sofrimento, ao dispêndio incessante, inclusive no chamado tempo livre, lembrando Adorno, tempo extensão do trabalho, para a maioria é o pouco tempo que resta entre o ir-e-vir, o alimentar-se e a noite de sono, tudo pago pelo próprio corpo. Para outros, tempo de consumir tempo, ocupar-se de dispositivos que, cada vez mais, exigem o mesmo dispêndio do trabalho.

Na política, aquela que não se restringe à delegação da representação, quando vamos às ruas, são nossos corpos que levamos. Judith Butler, muito acertadamente, afirma:

“[...] quero sugerir que quando os corpos se juntam na rua, na praça ou em outras formas de espaço público (incluindo os virtuais), eles estão exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e política, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária”[3].

As vozes que levamos às ruas são também corpóreas. Penso aqui na ideia de “vocalidade” de Paul Zumthor[4], A Voz projeta o corpóreo no espaço. No caso das ruas, no espaço público. Corpos e vozes performativos, mas, sobretudo indóceis, desobedientes à Ordem. Corpos de todas as formas e cores que demandam muito mais que o fazerem-se presentes e visíveis com suas diferenças, corpos des-ordeiros que afirmam uma negação, corpos que re-existem.

Estas são algumas das razões da criminalização dos corpos, da exigência de suas uniformizações: é sobre nossos corpos que se inscreve a Lei. Corpos devem ser definidos pela lógica dual da Ordem, tudo que fuja ao azul ou rosa deve ser punido. Corpos são torturados para silenciar-se, não para falar. Para fazer calar uma voz, no limite, cala-se o corpo, assim fizeram com Marielle e centenas de outros corpos conhecidos ou anônimos.  



[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 27ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 164 – 165.
[2] MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. V. I, Livro 1. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996. p. 197 – 198.

[3] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. p. 17.

[4] Consultar ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.




Um comentário:

  1. Muito importante a sua reflexão acerca do corpo, que ao longo da história vem sendo submetido às ordens vigentes do Estado e de uma sociedade controladora.
    Isso se agrava sobremaneira quando se trata do corpo feminino, em uma sociedade que ainda não superou o patriarcalismo.
    Desde criança, o corpo da mulher é moldado dentro de critérios rígidos de educação e controle, para que ela corresponda ao subjugo de uma sociedade machista.
    Ela precisa ser forte e ousada para superar o medo de viver a sua liberdade.
    Diariamente, mulheres são submetidas a todas as formas de violência e ao feminicídio, perpetrada por homens, que entendem que o corpo da mulher é de sua propriedade.
    Até o seu útero é considerado como propriedade pública, devendo procriar, mesmo quando não seja esse o seu desejo.
    Temos muito a caminhar para transformar essa realidade, e de fato, tomarmos posse dos nossos corpos.

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