31 de jan. de 2018

"DEAD FLOWERS" (OU: PRA NÃO DIZER QUE EU TAMBÉM NÃO FALEI DE FLORES)



vai findando,
perdido adolescente,
um janeiro de paixão louca

                               e imprudente.







I.

Impreciso horário de verão, final de tarde, talvez início da noite.

Esquina, sinal fechado no meu peito no cruzamento.

O vendedor de rosas oferecia vermelhas e amarelas.

Lembrei: Oyá, senhora dos ventos, ou Oxum, águas doces, sedutora? Ardilosa também, dizem alguns. Caetano fala que “teve o negócio de você perguntar o meu signo”, mas nós numa noite especulamos Orixás, eu com a quase certeza de Oyá, você me dizendo já se saber d’Oxum.

Cena estranha aquela, recordar o diálogo sobre divindades iorubas escutando Have a cigar do Pink Floyd no carro. Pink, rosa. Cor-de-rosa vermelha ou amarela.

Nas mãos do vendedor havia também maços de cores imprecisas como o horário de verão: dia ou noite? Era um entre-tempo, transição, era um “quando o silêncio saia de seus guardados”, como disse uma vez Riobaldo sobre o lusco-fusco do amanhecer, no Grande Sertão do Rosa. Ou era o contrário? Faz diferença? O Rosa, a rosa, o vendedor entre os carros. Algumas até já meio murchas, resto de rosa, sobra: falta, aquilo que resta.

“As rosas não falam”.

Sinal fechado signo estancado num lapso denso, finalmente ficaram para trás o vendedor e suas rosas que logo poderiam ser as dead flowers da canção dos Stones. Tomei o rumo da noite.



II.

Contei que tomei o rumo da noite?

Noite insuportável, túnel de estrada que não termina, chamei Janis porque ela gritava escancaradamente e às vezes usava coroas de flores nos cabelos.

Apropriei-me de seus gritos como se saíssem de minhas entranhas: “cry baby!”

Take another little piece of my heart!”: fatia, eu fatiado dirigindo pelas ruas pouco movimentadas. Sabe, verão, férias, fim de semana. Segui me despetalando como iria acontecer fatalmente às flores do vendedor, aquele do cruzamento, encruzilhada, crossroad.

Este é o destino das rosas e outras flores: despedaçarem-se até apodrecer, deteriorar. Menos as de plástico, elas não morrem. Não sou de plástico nem sou flor-que-se-cheire, como o Caetano: “juro que eu não presto”.

Enfim chego ao destino, destino é lugar de chegada? Chego mesmo que não seja e me encerro, cerro, cerração, hoje não tem neblina mas não está mais tudo azul, tudo “blues”: Janis às vezes usava flores nos cabelos.


III.

Perguntei se destino era lugar de chegada, lembra? Chegada, pouso, repouso é fim da inquietude? Então não cheguei porque chegar é fim de viagem.

Arnaldo bate com os punhos fechados em seu próprio peito, depois, seguindo no crescendo da canção, grita: “eu já disse adeus, eu já disse adeus [...] aqui não tem amor!”. Blefe de poeta, ops, de seu “eu lírico”. Não tivesse amor não explodiria um grito. Arnaldo sabe, por isso blefa. Coração fechado com as chaves jogadas fora? Ora, isso é o que se quer dizendo que não, SQN. Quisesse mesmo não avisava, não cantava, não gritava.

O grito suplica para que batam na porta, pancadas daquelas que quase arrebentam as dobradiças. Urgências, arrebatamento, paixão, como as guitarras de Edegard Scandurra e/ou de Pete Townshend. Who?

Qualquer poema escancarado, tudo me serve, tudo me implode.

Tudo começou quando falei de flores, lembra? Dead flowers, as flores no cabelo de Janis, flores de plástico que não morrem, as rosas nas mãos do vendedor, ele as oferecia no cruzamento da minha vida, o sinal fechado estancando o fluxo de sangue nas veias...pulso...pulso...pulso. Tá tudo errado, o sinal para seguir deveria ser o vermelho arterial.

Queria mesmo te convidar pra correr estrada, ouvir blues, ficarmos bêbados e desmaiarmos nus, aí sim, destino, mas não ponto de chegada, só pit stop.
Não tem essa de “meu momento atual”, nem isso e aquilo. Faltou mesmo foi tesão: posso conviver com tua ausência de paixão, não com a minha.

Sou Keith Richard esvaindo-me em cigarros e riffs. Sou Cazuza exageradamente transtornado no lado escuro da vida. Sou o grito de uma canção desesperada de amor: “Layla, you've got me on my knees!”


IV.

So what?

Quem disse que jazz não explode?

Miles, Chet, Nina, Ella, John Coltrane e a descendência toda desesperadamente blues: Bessie, Billie, Janis e Amy.

Jazz explode, só que em algo meio azul, aquele azulado noturno das regiões dos bares, pessoas circulando com long necks nas mãos, encontrando, perdendo ou só circulando mesmo, andando em voltas, às voltas com desejos, alguns confessáveis, outros não. Desejos que não se sabem.

You might find the night time the right time for kissing

Azul, azuis. Azul-melancolia, existe? Você me disse que via melancolia em meu olhar, lembra? É minha cor preferida, é um Kind of Blue.

Onde termina o blues e começa o jazz?

Não estou perguntando sobre tons, acordes, andamento, escala! Quero, preciso desesperadamente saber onde termina uma dor e começa outra. Ou não, simplesmente salto de um lado ao outro e é a mesma dor? Pain to heal pain, “dor para curar a dor”, explicou o velho bluesman.

Quero saber também porque todo mundo pensa que o dia aparece, surge, emerge, quando na verdade é a noite que se escancara sem pudor algum, explode em blues: “love me or leave me or let me be lonely”.

Você não sabia? Não se ‘mergulha’ na noite, é ela que nos afoga. De novo a imprecisão do instante em que a noite sai de dentro do dia, mergulho às avessas, encruzilhada, passagem, sinal fechado, não há azul no semáforo...

... nem flores azuis nas mãos do vendedor.

E daí?



RJdS, janeiro blues, 2018

18 de jan. de 2018

Le fantasme

Marlène Raymaekers, Daphné et Apollon, s/d
               







                        

Rafael José dos Santos


                        Tu, fantasma,
                        açoite de meu
                        desejo aflito,
                        estás
                        onde não te busco,
                        enuncia-me
                        com palavras
                        que me furtas.


                         Oferece-te,
                         fantasma,
                         para que eu
                         em travessia
                         e desespero
                         enfrente
                         a tormenta,
                         correntes
                         ventos e
                         vagas,
                         com
                         amarga
                         lucidez,
                         tamanha
                         e tanta,
                         que me penso
                         naufragado
                         em ti,
                         
                         quando na praia
                         meu corpo,
                         arremessado e
                         só,
                         pela primeira vez
                         em fugaz verdade,
                         abandonado
                         repouse enfim.

                                                                                      RJdS - 18/01/2018











                                                                        



                                                                        

11 de jan. de 2018

“E NÃO PENSA QUE EU FUI POR NÃO TE AMAR”: LOS HERMANOS, JACQUES-ALAIN MILLER E OS “SERIAL LOVERS”

Follow The Red Umbrella by  TanjAwesome – DeviantArt (900 × 654)



Macuri Peteffi

&


Rafael José dos Santos













CENA I



           A canção traz o título de “Adeus você”, composição de Marcelo Camelo, e está no álbum sintomaticamente intitulado “Bloco do eu sozinho” (2001). Na letra-poema, o “eu lírico” abandona o outro sob o pretexto de um imperativo que, contra seu próprio discurso, pode ser interpretado nos termos de uma incapacidade de amar:

Adeus você
Eu hoje vou pro lado de lá
Eu tô levando tudo de mim
Que é pra não ter razão pra chorar
Vê se te alimenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Cuida do teu
Pra que ninguém te jogue no chão
Procure dividir-se em alguém
Procure-me em qualquer confusão
Levanta e te sustenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Quero ver você maior, meu bem
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante

Adeus você
Não venha mais me negacear
Teu choro não me faz desistir
Teu riso não me faz reclinar
Acalma essa tormenta
E se aguenta, que eu vou pro meu lugar

É bom às vezes se perder
Sem ter porquê, sem ter razão
É um dom saber envaidecer
Por si, saber mudar de tom

Quero não saber de cor também
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante

            Trata-se da “liberação do outro” para que o “eu lírico” possa cuidar de si mesmo em “seu lugar”, um lugar que lhe é próprio, exclusivo e excludente: um lugar no qual o outro não cabe, logo, não é um lugar comum aos dois, um espaço necessário às trocas que constituem o amor. A voz que se despede sustenta um discurso de aparente cuidado para com o outro (“Cuida do teu / Pra que ninguém te jogue no chão / Procure dividir-se em alguém”), mas não esconde o ato egoísta do abandono, reiteradamente repetido ao final: ”Pra que a minha vida siga adiante”.  

            Conselhos e afagos da parte de quem abandona surtem no abandonado um efeito contrário e o sujeito-que-foge “sabe” disso. O discurso do cuidado se trai, (como todo discurso): “Procure dividir-se em alguém”, ou seja: procure alguém que, aceitando sua falta, lhe dê o algo que eu nego.

            Nota-se a urgência de uma fuga e as precauções para que ele mesmo, o “eu lírico”, não reincida, não se dobre ao amar. Há um jogo de linguagem bastante revelador quando aquele que foge diz “Não venha mais me negacear”. Negacear, como verbo transitivo, significa “Fazer negaças a; seduzir por meio de negaças; provocar, enganar”, mas também “recusar” e “negar” (Dicionário Online de português). Negaças, segundo o Houaiss, é substantivo feminino: “artifício para iludir ou seduzir; ardil, logro”.

            Na letra/poema, quem foge, foge do quê? Quem recusa, recusa o quê? Por que o receio da sedução pelo objeto abandonado? Ocorrem aqui as palavras de Jacques-Alain Miller:

Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer – homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que creem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias[1].


            Seria o “eu lírico” um/a serial lover, ele/a mesmo/a? Após o jogo da sedução, retira-se da cena, do espaço comum, e num lapso de linguagem solicita, numa inversão perversa de papéis, que o outro não o seduza. Quem opta pela solidão? Quem a ela está condenado/a pelo ato do abandono?

            Neste caso, com o sintoma de uma falta não confessada, nem ao outro nem a si mesmo/a, o “eu lírico” se apresenta como um/a perverso/a que certamente não irá “seguir adiante”, mas prosseguir na repetição causando perdas e danos a si mesmo e ao seu redor:
O perverso permanece cativo de uma economia desejante que o priva desse direito ao desejo. Ele se exaure na tentativa de demonstrar, a contrário, que a única lei que reconhece no desejo é a lei imperativa do seu próprio desejo, e não a do desejo do outro[2].
            O sujeito-que-foge sabe-se objeto do desejo, [“a”], mesmo que, lugar comum na psicanálise, não saiba que sabe. É sua verdade ou, se alguém preferir, sua ficção: é o sujeito que se queixa repetidamente de sua própria inconstância, queixa que é também álibi de sua estrutura. É seu saber-se objeto do desejo do outro que conota sua perversidade: atrai (a trai, ou o trai) já antecipando o abandono.
            Marcelo Camelo, falamos agora do compositor, não de seu “eu lírico”, não deixa um espaço sequer de esquiva na relação do sujeito que foge do amor com a potência da rachadura produzida pela dinâmica arrebatadora da perda, do deixar, do desfazer e do desatar. O artista, neste caso o letrista-poeta, surge como o interlocutor do inconsciente com a cultura e os seus mais diversos modos de produção, arrisca e acerta os pontos sensíveis dos sentidos desnorteadores do desamor. Lembrarmo-nos de Jacques Lacan, que não deixou por menos: “[O psicanalista deve] se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede, e que ele não deve se meter a psicólogo ali onde o artista lhe abre os caminhos” [3]. Não se trata de psicologizar ou psicanalisar o artista, sua escritura musical e poética. Na contramão disto o artista e o amor não se deixam fisgar pelo apelo da consciência.

            É ainda nesta levada que Marcelo Camelo parece, ao olhar como olhamos agora, para o amor e suas estruturas, ter sido atento (sem o saber?) à Jacques Alain-Miller e Caetano Veloso. “Se em Miller encontramos “..mas do amor não conhecem nem os riscos, nem as delícias”,  em Caetano localizamos uma de suas ideias “mais-ainda” repetidas: “... cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Aí, nos parece acontecer um encontro entre o amor e seus riscos, o amor e suas dores e o amor e suas delícias. Um tripé pouco conveniente aos sujeitos que podem idealizar o amor como um campo de repouso e descanso para as suas pulsões.

            A premissa de senso comum acerca do “estar-bem-consigo-mesmo” para só então estar pronto para o amor é, portanto, rigorosamente uma falácia, produto do individualismo-sintoma na cultura do narcisismo, uma vez que o amor se fundamenta necessariamente no assumir uma falta. De novo com Miller: “amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo”. Ir “além de si mesmo”.

            O discurso da autossuficiência encontra eco, ao mesmo tempo em que é um dos elementos estruturantes, da cultura contemporânea. Um de seus riscos é fazer o Sujeito acreditar (porque não se trata de “má fé”) que ele ou ela pode supri(mi)r sua própria falta, o que lhe fornece também a ilusão da proteção contra o sofrimento que poderia ser-lhe impingido pelo outro. Assim fala a ilusão da autossuficiência:

Eu tô solteira porque relacionamento não é tentativa, não é oportunidade é investimento. Investimento de tempo. Eu to solteira porque talvez eu queira curtir essa fase sem ninguém, quero organizar a minha vida refazer meus planos. Eu to solteira porque estou bem assim, porque não quero alguém pra diminuir, quero alguém que venha para somar[4].

            Não há lugar para risco ou tentativa, aspectos de qualquer relacionamento, uma vez que o “investimento” deve trazer lucros sem riscos. Como, entretanto, amar sem correr riscos? Querer “alguém que venha para somar” é solicitar um acréscimo, não um preenchimento; um suplemento, não um complemento. É negar a natureza relacional...dos relacionamentos! Esse é o discurso sustentado na contemporaneidade e que encobre, sob a capa de uma aparentemente saudável autopreservação, o medo do abismo do Amor.
            Ir “além de si mesmo” é desprender-se, como na estrofe de Beto Guedes em Medo de amar:

O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós                                                                             
O que é nosso dever: recusar o poder.

            A recusa do poder é a recusa da autossuficiência, condição sine qua non da entrega, qualquer entrega amorosa, seja a um outro singular, seja a uma causa coletiva.
            O estilo arrasador do desamor vai provocar em seus “seriais”, seriados e séries, narrativas censuradas, discursos fragmentados e capítulos apagados. É neste enrosco que o não-cessar pulsional coloca os sujeitos nos movimentos amorosos e onde os seus inconsciente podem, ou não, se encontrar. O/a perverso/a é um triste condenado ao não-encontro.

*
*   *

           




[1] MILLER, Jacques-Alain. “Para Amar, É Necessário Reconhecer Que Se Tem Necessidade Do Outro”. Disponível em: http://www.portalraizes.com/amarreconhecernecessidade/. Acesso em 09/01/2018.


[2] KAUFMANN, Pierre. (Ed). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 421. 
[3] LACAN, Jacques. “Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein », in : Marguerite Duras, Paris, Albatros, 1979.

[4]  Thamilly Rozendo. Vem cá que eu te conto porque to solteira. In: SIMÕES. Fabíola. Soma de todos os afetos. Disponível em: http://www.asomadetodosafetos.com/2016/05/vem-ca-que-eu-te-conto-porque-to-solteira.html. Acesso em 11/01/2018. Sugerimos a leitura na íntegra por tratar-se de um texto revelador do narcisismo contemporâneo.

Lênin sim!

(Rafa) Tatiana Dias e Rafael Moro Martins, autores do artigo " ELOGIAR DITADORES É A MELHOR MANEIRA DE A ESQUERDA CONTINUAR ...