Deixei uma ave me amanhecer
Manoel de Barros
I.
“-
Como se fala com passarinho?”.
Alguém
que faz uma pergunta dessas é para ser apaixonadamente amada.
Pergunta
boa, coisa para o poeta Manoel de Barros responder. Acho que ele fala com
passarinhos. Se fala, sabe o que dizer. Eu é que cresci em apartamento, sei
nada sobre falar com passarinho. Mas a pergunta me fez amá-la ainda mais, soou
como pedaço de poema ou começo de estória infantil. Ou as duas coisas juntas.
Outra questão para o Manoel de Barros.
Os
dois chalés da pousada compartilhavam a mesma varanda, varanda tão generosa. O mar do Ypuã
aberto em azul, o deck com piscina. Da varanda vigiávamos navios no quase-horizonte,
os barcos de pesca, os vôos dos passarinhos. Um dos chalés estava vazio, então
a varanda inteira era nossa. Ela balançando em uma rede, eu em outra, o vento
sul, um tiquinho de friozinho, praia, explosão de azul. Às vezes éramos tomados
pela sensação de que tínhamos alguma coisa para fazer, sabe, coisa de gente de
cidade que tem sempre coisa para fazer. Mas o nosso “que fazer” ali era entregar-se ao céu e mar, aos passarinhos e ao vento sul.
Piscina
era decisão de hora: “- Vamos?” Era de se ficar na piscina olhando o mar, com
cerveja e bebidinha de vodca e limão. Ao redor tudo prosseguia azul.
Incursões
à praia, a mesma onde há dois anos havíamos feito nossos primeiros votos de
ficar juntos pra sempre. Nos dois primeiros dias, mar calmo, algo não muito
comum por ali.
Houve
uma noite de muitas estrelas, então a idéia dela foi ficarmos lá no deck da
piscina. Juntamos duas cadeiras daquelas de se deitar, com o encosto levantado
o suficiente para que pudéssemos olhar o céu. Ficamos especulando sobre as Três
Marias, sobre Escorpião e outras coisas que as pessoas inventaram para desenhar
com as estrelas. De repente, estrela cadente passou, não sei se nos viu, mas
nós a vimos. Pensamos desejos (ela em voz alta, eu em segredo).
Desejo que ela
fez à estrela cadente era o desejar de algo que pensamos em separado, mas nos
adivinhamos, a idéia estava nos dois: casar ali mesmo, no verão seguinte, que
ainda não é enquanto escrevo. Falta chegar um outono, passar um inverno e,
pacientemente, ver a primavera chegar e ir embora.
Mas
o casar só pode ser ali, em volta da piscina, só gente querida, todos de branco
e descalços. Ela desce pela escadaria rústica dos chalés, caminha pela grama
acompanhada por sua filha tão linda, tão Clara. Meu arcanjo de olho azul ao meu
lado, me guardando. O buquê de margaridas e girassóis:
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo?
Alguém
irá abençoar, alguém de alguma fé bonita dessas que só acredito porque tem seu
bonito, sua beleza. Eu feliz por casar com alguém que quer conversar com
passarinho.
Descobrimos
depois, pelo dono da pousada, que aquele passarinho em particular era um tipo
de andorinha, andorinha com penas compridas no rabo: andorinha-de-bando ou
andorinha africana. Mas tinhas gaivotas, fragatas.
II.
Banho
de mar, de piscina, sol, os corpos ficam assim, se querendo muito. Lembra-me
Alice Ruiz:
depois que um corpo
comporta
outro corpo
nenhum coração
suporta
o pouco
Não se pode, realmente, deixar por
menos esse lado da paixão do corpo de por quem se tem tanta paixão. Tem pele,
cheiro, textura: certa embriaguez.
III.
Amor assim. Dias antes, ao
pôr-do-sol na Barra da Laguna, começou a tocar Eu sei que vou te amar no som do carro, aquela versão em que
Vinícius declama:
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Aproximei-me
do ouvido dela e recitei com o poetinha. Clara clarinha estava no banco de trás
do carro. Ela disse à menina para nunca aceitar menos que aquilo de um amor. Isso
sim, coisa de mãe que gosta de conversar com passarinhos (ela conversa com plantas
também).
IV.
Fazer planos de quem nasceu para viver
perto do mar. Planos de quem não quer esperar para viver simples, de quem tem a
certeza de que não é preciso pagar pecado algum para ter céu depois. Amar tanto
a vida e o azul exige que se encontre um jeito até mesmo com certa urgência,
porque viver no exílio dói muito. Além disso, fica muito difícil tentar
conversar com passarinhos e vigiar estrelas em um lugar que não nos pertence,
ao qual não pertencemos.
V.
Planos de vida que tenham coisas
como alguém chegando de quadriciclo puxando a carreta onde estava o que havia
pescado. Descemos lá do chalé, ganhamos dois peixes e mariscos. Dia seguinte
teve risoto preparado a dois.
Vida assim. Impossível aceitar menos
que isso: vale para amor e vida.
Amigos, casal, avisam que estão
na cidade. Explicamos o caminho e vamos encontrá-los na estrada do farol, lá na
Passagem da Barra. Era dia de São Sebastião. Foguetório. Eles vêm à pousada,
banho de mar dos bons, água daquele jeito, como se a alma se lavasse a cada
mergulho. Depois piscina, cerveja. Casquinha de siri e risólis de camarão.
Amigos vão embora felizes.
VI.
Dia de deixar o azul do Ypuã, algo
de embargado na garganta. Concentrar-se em coisas práticas (sou tão pouco
prático!): malas, clima, especulações sobre o movimento nas estradas. Saímos os
dois deixando as andorinhas cuidando do ninho e do lugar. Na balsa ela
descobriu que os botos (é como se chama os golfinhos na Laguna) vieram dizer “até logo”. Retribuímos com pensamentos e
desejos que não sabem ser escritos.