“Ou então cada paisano e cada capataz
por sua
burrice fará jorrar sangue demais
nos pantanais,
nas cidades, caatingas
e nos Gerais?”
Caetano Veloso (Podres Poderes)
Capatazes e paisanos,
campo e cidade, personagens de John Wayne e Charles Bronson marcaram encontro
no coração do Brasil, algum ponto entre a Igreja da Candelária e a fronteira
com a Venezuela. O cowboy, eternizado
nas telas como intrépido matador de índios, troca um aperto de mão com o justiceiro
de rua da (infindável) série “Desejo de Matar”. Os personagens cumprem sua
missão: eliminar a incômoda presença de Yanomâmis e “meninos de rua”; os primeiros
representam o anacronismo e o entrave de uma Gloriosa Marcha para o Norte,
enquanto os últimos impregnam as ruas manchando um ideal de assepsia urbana.
As vítimas das duas
chacinas compartilham a característica de se constituírem em alteridades
insuportáveis de uma sociedade que mal consegue disfarçar, sob o manto de uma
consternação simulada, seu ódio por tudo que não seja sua própria imagem. O
ódio ao outro, em todas as suas variantes discriminatórias, encontra-se atuante
em nossa cultura e fornece terreno fértil para uma cumplicidade velada.
Entretanto, se o horror
às diferenças é generalizado na sociedade, os interesses subjacentes às
iniciativas assassinas restringem-se a classes e setores claros e definidos, e
estes últimos contam a seu favor com mecanismos sutis e eficazes para esterilizar
qualquer iniciativa radical que reivindique transformações estruturais no lugar
de paliativas apurações de fatos.
Um desses mecanismos
serve-se mesmo da própria ideia de denúncia dos fatos. Nos jornais televisivos
a indignação encontra sua canalização e seu aplacamento; apresentadores
emocionados transformam a literalidade cruel em virtualidade espetacular e a
realidade trágica converte-se em simulacro, oferecendo ao telespectador a
oportunidade de viver sua cota de consternação pasteurizada. O telejornal
proporciona a ilusão de participação ao mesmo tempo que exorciza os elementos
de concretude, uma operação higiênica de re-semantização que Jean Baudrillard
expressou de modo brilhante: “Vivemos desta maneira ao abrigo dos signos e na
recusa do real”.
Além disso, o destino das
tragédias é transformar-se em mais um fait-divers
no interior de um fluxo intenso e extenso: “autoridades” dão início às “apurações
de fatos” e o desenrolar dos acontecimentos confunde-se, em questão de dias ou
semanas, com a trama da novela das oito, até que todas as histórias pereçam por
sua volatilidade.
É evidente que estamos frente
a mecanismos inerentes à estrutura das comunicações de massa, não se tratando
portanto de nenhuma estratégia intencional de acobertamento de interesses. Não
há dúvida porém que existem aqueles que se beneficiam dessa perversão dos
signos.
No capítulo da realidade,
Yanomâmis, “meninos de rua”, presos da Casa de Detenção, assim como lideranças
sindicais do campo frequentemente vítimas de atentados, todos nos revelam
incessantemente o caráter contraditório de nosso momento histórico. Não estamos
frente a manifestações patológicas de uma sociedade doente, tão pouco estamos
em descompasso com algum ideal de modernidade: os chamados “incidentes” são, na
verdade, desdobramentos visíveis de uma estrutura, e pouco ou nada possuem de
incidental, como fazem pensar até mesmo alguns indignados de boa fé. Chacinas,
genocídios e assassinatos não são corpos estranhos à nossa modernidade: são
traços de sua realização em nosso capitalismo periférico.
Voltando à indignação,
não me consta que John Wayne ou Charles Bronson tenham sido reprovados por suas
plateias; ao contrário, temáticas como a da expansão para o West – mesmo às custas de nações
indígenas inteiras -, ou como a da chacina justiceira das ruas – via de regra
executando bandidos negros ou hispânicos – encontram elementos de empatia
permanente no grande público. Nos dois temas recorre o Desejo de Matar o Outro.
A diferença, seja ela regional, étnica ou de classe, parece constituir-se em
algo insuportável.
Elementos de um
imaginário coletivo encontram-se, deste modo, indissociados de uma estrutura
econômica. Ambos complementam-se de modo constitutivo formando um quadro
refratário, mas não inacessível, aos esforços de interpretação crítica. Nesse
quadro figuram novas e reformuladas modalidades de um processo que não se
alterou em seu âmago: o capitalismo e suas tramas ideológicas, desejem ou não
os apologistas do neoliberalismo.
* Publicado no Jornal da Cidade de Rio Claro (SP), Terça-feira, 31 de Agosto de 1993.