31 de out. de 2018

Sobre Candelárias e Roraimas *

Publicado 25 anos atras.






“Ou então cada paisano e cada capataz
por sua burrice fará jorrar sangue demais
nos pantanais, nas cidades, caatingas
e nos Gerais?”

Caetano Veloso (Podres Poderes)




                Capatazes e paisanos, campo e cidade, personagens de John Wayne e Charles Bronson marcaram encontro no coração do Brasil, algum ponto entre a Igreja da Candelária e a fronteira com a Venezuela. O cowboy, eternizado nas telas como intrépido matador de índios, troca um aperto de mão com o justiceiro de rua da (infindável) série “Desejo de Matar”. Os personagens cumprem sua missão: eliminar a incômoda presença de Yanomâmis e “meninos de rua”; os primeiros representam o anacronismo e o entrave de uma Gloriosa Marcha para o Norte, enquanto os últimos impregnam as ruas manchando um ideal de assepsia urbana.

          As vítimas das duas chacinas compartilham a característica de se constituírem em alteridades insuportáveis de uma sociedade que mal consegue disfarçar, sob o manto de uma consternação simulada, seu ódio por tudo que não seja sua própria imagem. O ódio ao outro, em todas as suas variantes discriminatórias, encontra-se atuante em nossa cultura e fornece terreno fértil para uma cumplicidade velada.

          Entretanto, se o horror às diferenças é generalizado na sociedade, os interesses subjacentes às iniciativas assassinas restringem-se a classes e setores claros e definidos, e estes últimos contam a seu favor com mecanismos sutis e eficazes para esterilizar qualquer iniciativa radical que reivindique transformações estruturais no lugar de paliativas apurações de fatos.

          Um desses mecanismos serve-se mesmo da própria ideia de denúncia dos fatos. Nos jornais televisivos a indignação encontra sua canalização e seu aplacamento; apresentadores emocionados transformam a literalidade cruel em virtualidade espetacular e a realidade trágica converte-se em simulacro, oferecendo ao telespectador a oportunidade de viver sua cota de consternação pasteurizada. O telejornal proporciona a ilusão de participação ao mesmo tempo que exorciza os elementos de concretude, uma operação higiênica de re-semantização que Jean Baudrillard expressou de modo brilhante: “Vivemos desta maneira ao abrigo dos signos e na recusa do real”.

          Além disso, o destino das tragédias é transformar-se em mais um fait-divers no interior de um fluxo intenso e extenso: “autoridades” dão início às “apurações de fatos” e o desenrolar dos acontecimentos confunde-se, em questão de dias ou semanas, com a trama da novela das oito, até que todas as histórias pereçam por sua volatilidade.

          É evidente que estamos frente a mecanismos inerentes à estrutura das comunicações de massa, não se tratando portanto de nenhuma estratégia intencional de acobertamento de interesses. Não há dúvida porém que existem aqueles que se beneficiam dessa perversão dos signos.

          No capítulo da realidade, Yanomâmis, “meninos de rua”, presos da Casa de Detenção, assim como lideranças sindicais do campo frequentemente vítimas de atentados, todos nos revelam incessantemente o caráter contraditório de nosso momento histórico. Não estamos frente a manifestações patológicas de uma sociedade doente, tão pouco estamos em descompasso com algum ideal de modernidade: os chamados “incidentes” são, na verdade, desdobramentos visíveis de uma estrutura, e pouco ou nada possuem de incidental, como fazem pensar até mesmo alguns indignados de boa fé. Chacinas, genocídios e assassinatos não são corpos estranhos à nossa modernidade: são traços de sua realização em nosso capitalismo periférico.

          Voltando à indignação, não me consta que John Wayne ou Charles Bronson tenham sido reprovados por suas plateias; ao contrário, temáticas como a da expansão para o West – mesmo às custas de nações indígenas inteiras -, ou como a da chacina justiceira das ruas – via de regra executando bandidos negros ou hispânicos – encontram elementos de empatia permanente no grande público. Nos dois temas recorre o Desejo de Matar o Outro. A diferença, seja ela regional, étnica ou de classe, parece constituir-se em algo insuportável.

         Elementos de um imaginário coletivo encontram-se, deste modo, indissociados de uma estrutura econômica. Ambos complementam-se de modo constitutivo formando um quadro refratário, mas não inacessível, aos esforços de interpretação crítica. Nesse quadro figuram novas e reformuladas modalidades de um processo que não se alterou em seu âmago: o capitalismo e suas tramas ideológicas, desejem ou não os apologistas do neoliberalismo.

* Publicado no Jornal da Cidade de Rio Claro (SP), Terça-feira, 31 de Agosto de 1993.

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