28 de nov. de 2017

Língua adotiva







                                                 Xavier Vatin*

Acabo de entender, depois de 10 anos de inquietação, angústia e perplexidade, o porquê  da minha imensa dificuldade em falar francês, minha língua materna, com meus filhos no dia-a-dia. Muito antes de eles nascerem, sempre tive a convicção da importância do bilinguismo precoce. Sempre imaginei as melhores formas de exercer esse bilinguismo tão útil para o futuro deles, além de muito positivo do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, segundo os especialistas (tenho vários livros sobre o tema). 

Contudo, ao longo dos últimos dez anos (minha filha Luna tem 11 e meu filho Luca tem 7), nunca consegui falar regular e/ou diariamente francês com eles, aqui no Brasil. Na ocasião de curtas viagens de férias na França para visitar a família, Luna, contudo, demonstrou uma notável facilidade para entender e falar francês (fato este que vinha amenizar meu sentimento de culpa). Da última vez que fomos, o ano passado, quando Luca tinha 6 anos, ele também já demonstrou uma certa facilidade na compreensão da língua. 

Mesmo assim, até o fatídico dia de hoje, fazia dez anos que eu buscava entender as razões do meu bloqueio em falar minha língua materna com meus filhos. Entre elas, sempre considerei que o fato de viver no Brasil e estar inserido cotidianamente na realidade local (trabalho, escola, vida doméstica) era a razão essencial desta recorrente dificuldade. Afinal, é bem mais fácil falar português na realidade diária brasileira do que tentar falar, “artificialmente”, o francês. 

Diante de tamanha dificuldade, tentei estabelecer, ao longo dos anos, diversas regras: falar francês em casa com eles dois, falar francês um determinado dia da semana, falar francês algumas horas por dia, ler histórias em francês para eles... Comprei, de fato, dezenas de livros em francês para eles e já consegui ler algumas vezes, na integralidade, “O Pequeno Príncipe”, para ambos, quando eram mais novos. Mas a experiência de leitura, até hoje, não foi muito além dessa narração noturna da obra prima de Saint Exupéry... 

Mais uma vez, me sinto um pouco menos culpado quando vejo a relativa fluência de Luna na ocasião das referidas curtas viagens à França – fluência notável e até surpreendente, repito, diante da pouca exposição dela à língua materna do pai dela. 

Ora, hoje à noite, tentando contar para Luca a história da vida dele em francês na hora de colocar ele para dormir, entendi finalmente, repentinamente, a causa profunda, verdadeira, desses dez anos de desencontro perturbador com a minha língua materna. 

O português do Brasil tem se tornado, ao longo dos últimos 25 anos, a minha língua adotiva, a língua na qual aprendi a expressar meus sentimentos, minhas emoções, de uma forma que eu nunca tinha conseguido na minha língua materna, o francês. 

Vivi uma infância feliz, porém marcada, aos 7 anos, por uma ruptura abrupta, profunda. Deste trauma inaugural do ser humano que sou até hoje, seguiram longos anos de silêncio, emoções sufocadas, choros escondidos, palavras nunca ditas. Até os 21 anos de idade, quando vim para a Bahia pela primeira vez, eu ainda era essa criança de 7 anos absolutamente inapta a expressar, verbalizar seus sentimentos, suas inquietações, seus medos, suas raivas contidas, suas dores, suas feridas abertas. 

A Bahia me ofereceu a possibilidade de me expressar de uma forma nova, inédita, salvadora. Ao longo dos últimos 25 anos, aprendi, inconscientemente, a libertar uma fala presa há tantos anos. E essa libertação aconteceu, gradualmente, nessa nova língua adotiva. 

Portanto, acredito, hoje, que a minha extrema dificuldade em falar francês com meus filhos, aqui no Brasil, no dia-a-dia, seja a consequência dessa história um tanto peculiar. A língua portuguesa tem se tornado, para mim, muito mais do que uma segunda língua. A língua portuguesa, para mim, foi e continua sendo um instrumento de libertação psíquica e emocional. 

Hoje, tentando contar sua história de vida para meu amado filho na minha língua materna, ao meu ouvir falando, buscando as palavras com dificuldade, palavras estranhamente isentas de afeto, compreendi, finalmente. Parei. Refleti. E prossegui a narrativa até ele dormir... Porém, em português, reencontrando instantaneamente fluência e afeto. 

Concluo afirmando que, para mim, a língua do afeto, a língua da libertação e da transmissão do amor filial, não é a minha língua materna, mas sim a minha língua adotiva. 

A Bahia teve a bondade de me adotar quando me joguei nos braços dela, 25 anos atrás, em busca de um abraço salvador e libertador. A Bahia fez de mim um homem novo, mais livre do que a criança e o jovem adulto enclausurado em si que eu era e sempre fui na minha terra natal e na minha língua materna. 

A língua portuguesa tem sido o instrumento da minha alforria emocional. 

Axé! 

Xavier Vatin


* Xavier Vatin é francês e foi adotado pela Bahia aos 21 anos de idade, quando passou a conviver com Pierre Verger e iniciar pesquisas etnomusicologicas sobre o candomblé. Professor de antropologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia desde 2006 e com pesquisas sobre as musicas afro-atlânticas, Vatin é pai de dois filhos franco-baianos, Luna, 11 anos, e Luca, 7 anos.

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