O dia amanheceu e está tudo bem, está tudo em paz.
Ontem à noite o Brasil passou na
TV,
mas foi há muito tempo, porque
hoje tudo está em paz.
O torturador de hoje homenageou o
torturador de ontem,
mas isso foi há muito tempo ontem
à noite.
Usurpadores de terras indígenas, quilombolas,
terras dos sem terra,
passaram na TV ontem à noite,
noite longa que esvaiu-se com o
dia
amanhecido em paz.
Mulheres e homens negros,
pálidos,
voltaram as costas a
mulheres e homens negros
em nome de um deus dos flagelos.
Ontem à noite
o gozo perverso dos grandes ódios
do cotidiano
alimentou com suas migalhas
a alma das “pessoas de bem”,
por isso o dia amanheceu em paz.
Ontem à noite o filho abraçou o
pai e cantou em seu ouvido:
“Get up, stand up, stand up, don’t give up the
fight”.
Obrigado, filho, mas era só um
sonho ruim, pois hoje,
hoje tudo está em paz.
A menina Claridade
descobriu o Mal assistindo o
Brasil na TV,
e parecia remoer dores de
gerações de antes
do Brasil ser o mesmo, tudo em
paz.
a Namorada,
“amada, mas amada pra valer”,
despertou entre a indignação e a
tristeza
da manhã que, ao final, amanheceu
em paz.
Ontem à noite amigos queridos
dividiram o momento de uma
esperança
que se esvaiu no interior da
penumbra.
E o dia, já se sabe,
já contei,
amanheceu em paz ... como um
jazigo.
Anacrônico, alguém começou o dia
ouvindo velhas canções de
protesto,
lembrando que de dentro da paz
é imperativo que se erga
um vulcão, mil vulcões,
muitas mãos.
Que das fissuras da paz farsante
irrompa a inquietude
intransigente das utopias.
Rafael