12 de fev. de 2019

De Daíra a Belchior: uma ponte entre dois tempos do mesmo Brasil.

Fotos de capa e divulgação: Carolina Muait




por Rafael José dos Santos.

















                Começou assim, numa conversa pelo whatsapp alguém me enviou a canção “Princesa do meu lugar”, de Belchior, versão reinventada por Daíra. Descobri, então, a moça cantora de Niterói. Um link leva ao outro e cheguei ao seu álbum “Amar e mudar as coisas”, Daíra cantando Belchior. A frase título é retirada de uma estrofe de Alucinação, uma das canções-poema em que o poeta cearense se revela um cronista da vida. O olhar do moço migrante de Sobral se lança ao cotidiano, às pessoas e cenas urbanas comuns, convertendo tudo em imagens fortes, impactantes, como na referência aos “humilhados do parque com os seus jornais”.
        Belchior é denso, densidade intensa, apaixonada. Sua poesia é repleta de referências intertextuais: de Poe a João Cabral, de Caetano a Dylan e, sobretudo, aos Beatles. Em suas crônicas poéticas de rapaz “vindo do interior”, vê a cidade com um olhar que destoa do divino maravilhoso tropicalista: “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua”, avisa Belchior em Fotografia3 x 4. Alguns afirmam que Belchior não entendeu a referência de Caetano ao Sol, será? Jogo de palavras, poesia não é tratado acadêmico (aliás, a arte é muito mais eloquente e interessante). Belchior foi, entre outras coisas, um cantador do desencanto, um des-en-cantador , poeta de uma aridez lírica, provocativa e apaixonada.
Nada disso, contudo, é novidade, há muita coisa melhor e mais bem escrita sobre a poesia de Belchior. (Também não é adesão a lados em querelas da MPB: para registro, adoro o Tropicalismo).  Este prólogo, na verdade, é para começar, só começar, a falar da reinvenção de Belchior por Daíra. Reinvenção é mais do que interpretação e não tem nada a ver com o detestável termo ‘cover’.
Daíra cria uma ponte entre o que Belchior tinha a dizer dos 1970 e o que teria, muito provavelmente, a dizer sobre o momento atual. O Brasil de hoje assiste a uma espécie de retorno do recalcado e muitas das mazelas e angústias cantadas por Belchior ganham uma atualidade perversa. As “coisas do porão” ressurgem, algumas com nova roupagem, outras com a mesma velha roupa cinza. Versos compostos nos anos setenta poderiam ser de antes de ontem:

“Nesta terra de doutores, magníficos reitores, leva-se a sério a comédia!
A musa-pomba do Espírito Santo - e não o bem comum! - Inspira o bispo e o Governante.
Velhos católicos, políticos jovens, senhoras de idade média,
- sem pecado abaixo do Equador - fazem falta e inveja ao inferno de Dante.”

Alguns personagens mudaram, ou melhor, alguns papéis são representados por novos atores e atrizes, absolutamente conforme a ideia de repetição histórica, tragédia e farsa. No Brasil de hoje, uma farsa trágica com alguma comédia sem graça levada a sério.  Os “cidadãos respeitáveis, donos de nossas vidas, pais e patrões do país”, como cantou Belchior nos anos 1970, mostram-se ainda mais patriarcais e patronais, e são mimetizados por camadas sociais nas quais famílias moralistas ainda deixam seus conflitos aflorarem na “hora do almoço”. (provavelmente depois do “culto” soi-disant neo-pentecostal).
O cotidiano não escapa imune. Aliás, se falarmos das ruas das grandes cidades onde circulam “pessoas cinzas normais” (sempre Belchior), aumentou o desamparo e a angústia. Há cada vez mais humilhados no parque, e rapazes delicados e alegres que “cantam e requebram” são perseguidos e assassinados. Medo, medo, medo, medo. Temos medo.
Daíra é moça nova, de uma geração que se espanta tal como se espantava Belchior. A cantora reinventa a crônica do “rapaz latino-americano”. Caso ela fosse jornalista, eu diria que ela expõe sua versão dos fatos e está atenta ao que rola ao seu redor, atenta como era Belchior. Ela varia em suas performances, ora doce e brejeira, como em “Princesa do meu lugar” ou bucólica  cantando single com seu violão à beira de um rio; ora provocativa e cortante em “Como o diabo gosta” e na já citada “Jornal blues, ou Canção Leve de Escárnio e Maldizer” (confesso: uma de minhas preferidas, meus dois ou três leitores conhecem minha paixão pelo blues).
As muitas vozes de Daíra, doce, forte, irônica, suave, são bastante diferentes da voz dura e cortante de Belchior. A arte de Daíra é também coletiva: arranjos, o trabalho minucioso e quase artesanal dos músicos, tudo junto nos mostra “que o novo sempre vem”, embora Belchior nunca tenha envelhecido.  
Mas Daíra é, para além de tudo, amor, muito amor. O mesmo amor que Belchior deixava vazar por entre as palavras cortantes, amor pelas pessoas, todas. Vejam aqui o clipe oficial de “Princesado meu lugar” e decifrem as sutilezas da amorosidade de Daíra. As coisas andam difíceis, é preciso muda-las, isso interessa mais. Muito mais.

(Rafa)

Importante!
Daíra e sua turma maravilhosa estão em plena reta final de uma campanha. Vamos fazer o Brasil ficar mais bonito, ainda mais sonoro: colaborem aqui: https://benfeitoria.com/DairavaiViajar?fbclid=IwAR3FhaZl63ylGkXQjSnIbCE27HosAK0Cz3T_YraYlmXZv08pF0GKJ98PyOQ
#DaíracantaBelchior #TURNÊBRASIL 

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