Fotos de capa e divulgação: Carolina Muait |
por Rafael José dos Santos.
Começou
assim, numa conversa pelo whatsapp alguém me enviou a canção “Princesa do meu lugar”, de
Belchior, versão reinventada por Daíra. Descobri, então, a moça cantora de
Niterói. Um link leva ao outro e cheguei ao seu álbum “Amar e mudar as coisas”, Daíra cantando Belchior. A frase título é retirada de uma estrofe de Alucinação, uma das canções-poema em que o poeta cearense se revela um
cronista da vida. O olhar do moço migrante de Sobral se lança ao cotidiano, às
pessoas e cenas urbanas comuns, convertendo tudo em imagens fortes,
impactantes, como na referência aos “humilhados do parque com os seus jornais”.
Belchior
é denso, densidade intensa, apaixonada. Sua poesia é repleta de referências
intertextuais: de Poe a João Cabral, de Caetano a Dylan e, sobretudo, aos
Beatles. Em suas crônicas poéticas de rapaz “vindo do interior”, vê a cidade
com um olhar que destoa do divino maravilhoso tropicalista: “Veloso, o sol não
é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua”, avisa Belchior em Fotografia3 x 4. Alguns afirmam que Belchior não entendeu a referência de Caetano ao
Sol, será? Jogo de palavras, poesia não é tratado acadêmico (aliás, a arte é
muito mais eloquente e interessante). Belchior foi, entre outras coisas, um cantador
do desencanto, um des-en-cantador , poeta de uma aridez lírica, provocativa e
apaixonada.
Nada disso,
contudo, é novidade, há muita coisa melhor e mais bem escrita sobre a poesia de
Belchior. (Também não é adesão a lados em querelas da MPB: para registro, adoro
o Tropicalismo). Este prólogo, na
verdade, é para começar, só começar, a falar da reinvenção de Belchior por Daíra. Reinvenção
é mais do que interpretação e não tem nada a ver com o detestável termo
‘cover’.
Daíra cria uma
ponte entre o que Belchior tinha a dizer dos 1970 e o que teria, muito
provavelmente, a dizer sobre o momento atual. O Brasil de hoje assiste a uma
espécie de retorno do recalcado e muitas das mazelas e angústias cantadas por
Belchior ganham uma atualidade perversa. As “coisas do porão” ressurgem,
algumas com nova roupagem, outras com a mesma velha roupa cinza. Versos
compostos nos anos setenta poderiam ser de antes de ontem:
“Nesta terra de
doutores, magníficos reitores, leva-se a sério a comédia!
A musa-pomba do
Espírito Santo - e não o bem comum! - Inspira o bispo e o Governante.
Velhos católicos,
políticos jovens, senhoras de idade média,
- sem pecado abaixo
do Equador - fazem falta e inveja ao inferno de Dante.”
Alguns personagens
mudaram, ou melhor, alguns papéis são representados por novos atores e atrizes,
absolutamente conforme a ideia de repetição histórica, tragédia e farsa. No
Brasil de hoje, uma farsa trágica com alguma comédia sem graça levada a sério. Os
“cidadãos respeitáveis, donos de nossas vidas, pais e patrões do país”, como
cantou Belchior nos anos 1970, mostram-se ainda mais patriarcais e patronais, e
são mimetizados por camadas sociais nas quais famílias moralistas ainda deixam
seus conflitos aflorarem na “hora do almoço”. (provavelmente depois do
“culto” soi-disant neo-pentecostal).
O cotidiano não
escapa imune. Aliás, se falarmos das ruas das grandes cidades onde circulam
“pessoas cinzas normais” (sempre Belchior), aumentou o desamparo e a angústia.
Há cada vez mais humilhados no parque, e rapazes delicados e alegres que
“cantam e requebram” são perseguidos e assassinados. Medo, medo, medo, medo.
Temos medo.
Daíra é moça nova, de
uma geração que se espanta tal como se espantava Belchior. A cantora reinventa
a crônica do “rapaz latino-americano”. Caso ela fosse jornalista, eu diria que
ela expõe sua versão dos fatos e está atenta ao que rola ao seu redor, atenta
como era Belchior. Ela varia em suas performances, ora doce e brejeira, como em
“Princesa do meu lugar” ou bucólica cantando single com seu violão à beira de um rio;
ora provocativa e cortante em “Como o diabo gosta” e na já citada “Jornal
blues, ou Canção Leve de Escárnio e Maldizer” (confesso: uma de minhas
preferidas, meus dois ou três leitores conhecem minha paixão pelo blues).
As muitas vozes de
Daíra, doce, forte, irônica, suave, são bastante diferentes da voz dura e
cortante de Belchior. A arte de Daíra é também coletiva: arranjos, o trabalho
minucioso e quase artesanal dos músicos, tudo junto nos mostra “que o novo
sempre vem”, embora Belchior nunca tenha envelhecido.
Mas Daíra é, para
além de tudo, amor, muito amor. O mesmo amor que Belchior deixava vazar por entre
as palavras cortantes, amor pelas pessoas, todas. Vejam aqui o clipe oficial de “Princesado meu lugar” e
decifrem as sutilezas da amorosidade de Daíra. As coisas andam
difíceis, é preciso muda-las, isso interessa mais. Muito mais.
(Rafa)
Importante!
Daíra e sua turma
maravilhosa estão em plena reta final de uma campanha. Vamos fazer o Brasil
ficar mais bonito, ainda mais sonoro: colaborem aqui: https://benfeitoria.com/DairavaiViajar?fbclid=IwAR3FhaZl63ylGkXQjSnIbCE27HosAK0Cz3T_YraYlmXZv08pF0GKJ98PyOQ
#DaíracantaBelchior #TURNÊBRASIL
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