11 de jan. de 2018

“E NÃO PENSA QUE EU FUI POR NÃO TE AMAR”: LOS HERMANOS, JACQUES-ALAIN MILLER E OS “SERIAL LOVERS”

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Macuri Peteffi

&


Rafael José dos Santos













CENA I



           A canção traz o título de “Adeus você”, composição de Marcelo Camelo, e está no álbum sintomaticamente intitulado “Bloco do eu sozinho” (2001). Na letra-poema, o “eu lírico” abandona o outro sob o pretexto de um imperativo que, contra seu próprio discurso, pode ser interpretado nos termos de uma incapacidade de amar:

Adeus você
Eu hoje vou pro lado de lá
Eu tô levando tudo de mim
Que é pra não ter razão pra chorar
Vê se te alimenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Cuida do teu
Pra que ninguém te jogue no chão
Procure dividir-se em alguém
Procure-me em qualquer confusão
Levanta e te sustenta
E não pensa que eu fui por não te amar

Quero ver você maior, meu bem
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante

Adeus você
Não venha mais me negacear
Teu choro não me faz desistir
Teu riso não me faz reclinar
Acalma essa tormenta
E se aguenta, que eu vou pro meu lugar

É bom às vezes se perder
Sem ter porquê, sem ter razão
É um dom saber envaidecer
Por si, saber mudar de tom

Quero não saber de cor também
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante
Pra que minha vida siga adiante

            Trata-se da “liberação do outro” para que o “eu lírico” possa cuidar de si mesmo em “seu lugar”, um lugar que lhe é próprio, exclusivo e excludente: um lugar no qual o outro não cabe, logo, não é um lugar comum aos dois, um espaço necessário às trocas que constituem o amor. A voz que se despede sustenta um discurso de aparente cuidado para com o outro (“Cuida do teu / Pra que ninguém te jogue no chão / Procure dividir-se em alguém”), mas não esconde o ato egoísta do abandono, reiteradamente repetido ao final: ”Pra que a minha vida siga adiante”.  

            Conselhos e afagos da parte de quem abandona surtem no abandonado um efeito contrário e o sujeito-que-foge “sabe” disso. O discurso do cuidado se trai, (como todo discurso): “Procure dividir-se em alguém”, ou seja: procure alguém que, aceitando sua falta, lhe dê o algo que eu nego.

            Nota-se a urgência de uma fuga e as precauções para que ele mesmo, o “eu lírico”, não reincida, não se dobre ao amar. Há um jogo de linguagem bastante revelador quando aquele que foge diz “Não venha mais me negacear”. Negacear, como verbo transitivo, significa “Fazer negaças a; seduzir por meio de negaças; provocar, enganar”, mas também “recusar” e “negar” (Dicionário Online de português). Negaças, segundo o Houaiss, é substantivo feminino: “artifício para iludir ou seduzir; ardil, logro”.

            Na letra/poema, quem foge, foge do quê? Quem recusa, recusa o quê? Por que o receio da sedução pelo objeto abandonado? Ocorrem aqui as palavras de Jacques-Alain Miller:

Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer – homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que creem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias[1].


            Seria o “eu lírico” um/a serial lover, ele/a mesmo/a? Após o jogo da sedução, retira-se da cena, do espaço comum, e num lapso de linguagem solicita, numa inversão perversa de papéis, que o outro não o seduza. Quem opta pela solidão? Quem a ela está condenado/a pelo ato do abandono?

            Neste caso, com o sintoma de uma falta não confessada, nem ao outro nem a si mesmo/a, o “eu lírico” se apresenta como um/a perverso/a que certamente não irá “seguir adiante”, mas prosseguir na repetição causando perdas e danos a si mesmo e ao seu redor:
O perverso permanece cativo de uma economia desejante que o priva desse direito ao desejo. Ele se exaure na tentativa de demonstrar, a contrário, que a única lei que reconhece no desejo é a lei imperativa do seu próprio desejo, e não a do desejo do outro[2].
            O sujeito-que-foge sabe-se objeto do desejo, [“a”], mesmo que, lugar comum na psicanálise, não saiba que sabe. É sua verdade ou, se alguém preferir, sua ficção: é o sujeito que se queixa repetidamente de sua própria inconstância, queixa que é também álibi de sua estrutura. É seu saber-se objeto do desejo do outro que conota sua perversidade: atrai (a trai, ou o trai) já antecipando o abandono.
            Marcelo Camelo, falamos agora do compositor, não de seu “eu lírico”, não deixa um espaço sequer de esquiva na relação do sujeito que foge do amor com a potência da rachadura produzida pela dinâmica arrebatadora da perda, do deixar, do desfazer e do desatar. O artista, neste caso o letrista-poeta, surge como o interlocutor do inconsciente com a cultura e os seus mais diversos modos de produção, arrisca e acerta os pontos sensíveis dos sentidos desnorteadores do desamor. Lembrarmo-nos de Jacques Lacan, que não deixou por menos: “[O psicanalista deve] se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede, e que ele não deve se meter a psicólogo ali onde o artista lhe abre os caminhos” [3]. Não se trata de psicologizar ou psicanalisar o artista, sua escritura musical e poética. Na contramão disto o artista e o amor não se deixam fisgar pelo apelo da consciência.

            É ainda nesta levada que Marcelo Camelo parece, ao olhar como olhamos agora, para o amor e suas estruturas, ter sido atento (sem o saber?) à Jacques Alain-Miller e Caetano Veloso. “Se em Miller encontramos “..mas do amor não conhecem nem os riscos, nem as delícias”,  em Caetano localizamos uma de suas ideias “mais-ainda” repetidas: “... cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Aí, nos parece acontecer um encontro entre o amor e seus riscos, o amor e suas dores e o amor e suas delícias. Um tripé pouco conveniente aos sujeitos que podem idealizar o amor como um campo de repouso e descanso para as suas pulsões.

            A premissa de senso comum acerca do “estar-bem-consigo-mesmo” para só então estar pronto para o amor é, portanto, rigorosamente uma falácia, produto do individualismo-sintoma na cultura do narcisismo, uma vez que o amor se fundamenta necessariamente no assumir uma falta. De novo com Miller: “amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo”. Ir “além de si mesmo”.

            O discurso da autossuficiência encontra eco, ao mesmo tempo em que é um dos elementos estruturantes, da cultura contemporânea. Um de seus riscos é fazer o Sujeito acreditar (porque não se trata de “má fé”) que ele ou ela pode supri(mi)r sua própria falta, o que lhe fornece também a ilusão da proteção contra o sofrimento que poderia ser-lhe impingido pelo outro. Assim fala a ilusão da autossuficiência:

Eu tô solteira porque relacionamento não é tentativa, não é oportunidade é investimento. Investimento de tempo. Eu to solteira porque talvez eu queira curtir essa fase sem ninguém, quero organizar a minha vida refazer meus planos. Eu to solteira porque estou bem assim, porque não quero alguém pra diminuir, quero alguém que venha para somar[4].

            Não há lugar para risco ou tentativa, aspectos de qualquer relacionamento, uma vez que o “investimento” deve trazer lucros sem riscos. Como, entretanto, amar sem correr riscos? Querer “alguém que venha para somar” é solicitar um acréscimo, não um preenchimento; um suplemento, não um complemento. É negar a natureza relacional...dos relacionamentos! Esse é o discurso sustentado na contemporaneidade e que encobre, sob a capa de uma aparentemente saudável autopreservação, o medo do abismo do Amor.
            Ir “além de si mesmo” é desprender-se, como na estrofe de Beto Guedes em Medo de amar:

O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós                                                                             
O que é nosso dever: recusar o poder.

            A recusa do poder é a recusa da autossuficiência, condição sine qua non da entrega, qualquer entrega amorosa, seja a um outro singular, seja a uma causa coletiva.
            O estilo arrasador do desamor vai provocar em seus “seriais”, seriados e séries, narrativas censuradas, discursos fragmentados e capítulos apagados. É neste enrosco que o não-cessar pulsional coloca os sujeitos nos movimentos amorosos e onde os seus inconsciente podem, ou não, se encontrar. O/a perverso/a é um triste condenado ao não-encontro.

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[1] MILLER, Jacques-Alain. “Para Amar, É Necessário Reconhecer Que Se Tem Necessidade Do Outro”. Disponível em: http://www.portalraizes.com/amarreconhecernecessidade/. Acesso em 09/01/2018.


[2] KAUFMANN, Pierre. (Ed). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 421. 
[3] LACAN, Jacques. “Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein », in : Marguerite Duras, Paris, Albatros, 1979.

[4]  Thamilly Rozendo. Vem cá que eu te conto porque to solteira. In: SIMÕES. Fabíola. Soma de todos os afetos. Disponível em: http://www.asomadetodosafetos.com/2016/05/vem-ca-que-eu-te-conto-porque-to-solteira.html. Acesso em 11/01/2018. Sugerimos a leitura na íntegra por tratar-se de um texto revelador do narcisismo contemporâneo.

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