Intolerância, preconceito e
discriminação são fatos antigos e assumiram diferentes modalidades no decorrer
da história, mas hoje ganham uma visibilidade inédita, seja pela intensificação das diferenças pela
interculturalidade da mundialização, seja pelas possibilidades de manifestação pelas redes sociais. Os campos ideológicos que
se articulam na contemporaneidade forjam um espaço, mesmo que utópico, pelo
qual gostaríamos de convocar uma interpretação dos acontecimentos sociais. Por
esta brecha uma nova cena se apresenta. É impossível não pensar nos famigerados comentários
xenófobos, sexistas, homofóbicos e, em particular no caso das religiosidades
afro-brasileiras, as ofensas de cunho fundamentalista pseudo cristão.
Estes gestos de não
aceite do outro antecipam uma quase falência dos laços sociais, A cena
contemporânea apressada, das resoluções por instante, propõe um apagamento das
subjetividades. O afro-brasileiro engendrado com seu gesto religioso tem sua
posição de sujeito negada e estranhada. Do afrodescendente ao afro(in)descente,
as religiões africanas apresentam todo um estatuto que resiste ao monopólio do
totalitarismo ético e religioso no momento.
As intolerâncias de qualquer natureza
consistem na incapacidade de conviver com a diferença, incapacidade que se
materializa em coerções, violência simbólica ou física. A intolerância funciona
de acordo com uma lógica de imposição: algo que é particular, próprio de um
grupo, é entendido por esse grupo como universal, logo, deve ser aceito por
todo o conjunto da sociedade, buscando-se a eliminação do outro indesejável. Este outro que não pode
ser registrado no meu imaginário, é o outro que pode me estranhar. E estranha.
No rastro deixado por Freud, o estranhamento familiar seria o que temos de mais
próximo e, num tempo próximo, mais distante. O desejo de não reconhecer o outro
em sua posição de diferença causa o horror, o medo e até mesmo a morte. Neste jogo
de força o sujeito tem um encontro com o preconceito, com a discriminação e a
intolerância.
O preconceito é de ordem subjetiva,
moldado pela socialização, posição no espaço social, de gênero, cultura. A noção de cultura não
passaria despercebida por Freud e pela sua experiência, a psicanálise. Com o
olhar repousando sobre o nervosismo moderno até o grande período e mal-estar na
civilização. Desde então sabemos que há
um conflito fundador na cultura. Este conflito seria pedra angular para
umas das mais potentes formações do inconsciente: o sintoma. Assim, discriminação é o preconceito em
ação. O
sintoma, discriminação, filia-se num imaginário já inscrito com leis tiranas em
relação ao outro, de diferenças
subjetivas e por esta operação temos o preconceito.
No caso das intolerâncias religiosas
no Brasil contemporâneo, há que se distinguir duas dimensões. A primeira é de
natureza da estratégia de grupos autodenominados “evangélicos” (não nos
refirimos aqui às denominações cristãs de modo geral), verdadeiras empresas da
fé, nas quais os interesses políticos e econômicos de seus líderes,
profissionalmente subsidiados por sofisticadas técnicas de marketing, logram a
eficácia simbólica de mobilizar pessoas. A segunda dimensão diz respeito ao porquê dessa eficácia, que pode ser
sintetizada na seguinte pergunta: como os discursos de ódio dos dirigentes
dessas empresas conseguem atingir seu público?
São dimensões distintas e interligadas.
O crescimento das empresas pseudo religiosas fundamentalistas tem várias
interpretações, mas vamos nos deter em um aspecto: elas oferecem um produto que
vai ao encontro de anseios e angústias de uma parcela da população, anseios e
angústias que os modelos religiosos dominantes até então deixaram de atender. Uma
das táticas de mobilização de corações e mentes consiste em eleger alvos que
personifiquem o mal, fornecendo a referência da origem dos sofrimentos – um
movimento análogo àquele utilizado pelo nazi-fascismo. No caso brasileiro, isso
toma a forma discursiva de demonização
do outro. Todas as insatisfações difusas aos olhos dessa parcela da
população encontram um inimigo a ser
combatido.
Essa estratégia, mutatis mutandis, é a mesma em diferentes situações: a demonização
do socialismo – ou algo que pensam ser socialismo - pelos representantes do
capital, corporificando em um grupo, ou em uma figura, a representação do mal, mobilizando sentimentos igualmente difusos de insatisfação
em momentos de crise.
No que toca às religiosidades
afro-brasileiras, há um aspecto marcante. É o do corpo e da corporeidade, sobre
o qual opera uma dominação. Nos rituais de Umbanda, Candomblé, Batuque, o corpo
é subvertido, insurge-se contra as contingências da disciplina, abrindo espaço
para “além do bem e do mal”, algo que pode ser insuportável, logo, deve ser exorcizado. Essa é a base sobre a qual
reside a eficácia simbólica da ação consciente e planejadas dos empresários da
fé. Na
instância do consciente a ordem é a de ação. Ou seja, posso reproduzir o
preconceito, pois fazemos parte de uma classe social que detém boa parte do
capital e que manuseia os objetos simbólicos pelos quais o sujeito do
inconsciente, dos desejos, das falhas, e da alienação, pode deslizar.
Tal mobilização só encontra
ressonância porque o preconceito, e
aqui vamos ao nosso segundo termo, gera um campo fértil para a semeadura do
ódio.
O preconceito, como já dissemos, é um sentimento subjetivo e íntimo,
produto de um processo objetivo de socialização: preconceito aprende-se de
acordo com uma série de variáveis: posição no espaço social (posição de
classe), ideologia no seio familiar, na escola, nos grupos informais, de acordo
com o gênero, etc. Pierre Bourdieu já demonstrou isso. Contudo, só as variáveis
objetivas não explicam tudo. Há que considerar-se também a própria dimensão do
inconsciente. A
descoberta freudiana provoca um movimento de corte na própria cultura da época.
Freud coloca o inconsciente num entremeio entre o racional, o consciente e o cartesiano.
A Outra Cena, a do desejo, articula a
estrutura dos sujeitos e suas aparições na estrutura social, através do que
conhecemos como neurose, psicose e perversão.
Como estrutura psíquica
dos sujeitos a perversão é uma operação de dupla potência, a renegação. O
sujeito produz dribles na censura, na lei e no interdito da cultura para
alcançar o júbilo de seu gozo, negando a posição subjetiva de outro sujeito,
de outro grupo, de uma posição
ideológica que não seja a sua. Nesta tríade, preconceito, discriminação e
intolerância, o perverso se desloca e nos dá noticias através e pelas empresas
da fé.
Intolerância e discriminação – esta
entendida como ação -, são, portanto, da mesma ordem. A intolerância
manifesta-se sob a forma de atos (discursos) de discriminação e de ódio. Estas duas
modalidades discursivas não registram o afeto por outro sujeito. Num movimento
de avesso, elas reproduzem toda uma ideologia dominante que cada vez mais
demarca suas posições neoliberais e fascistas na estrutura social brasileira.
Colocam-se, portanto, duas tarefas da
mesma luta: uma contra o binômio discriminação/intolerância, outra contra o
preconceito. A primeira é da ordem da luta imediata, das táticas, a segundo,
das estratégias. Claro que tal distinção é apenas metodológica, mas é
necessária para que saibamos nos movimentar no front.
Esse front chama-se cultura. Não a cultura entendida folcloricamente como multiculturalismo festivo,
mas a cultura como espaço de luta contra
hegemônica, a cultura como uma arena de lutas que articule o desejo do sujeito
e sua posição na ideologia compreendendo,
inclusive, que parte significativa da intolerância e da discriminação não pode
ser compreendida separadamente da luta de classes (como o racismo de classe, sabemos
que muitas das manifestações recentes de racismo e discriminação ocorreram por
conta de conquistas de direitos e, sobretudo, de espaços que antes eram
exclusividade de camadas médias altas), embora não se explique
completamente por ela, isto é, não possa ser reduzidas às relações materiais de
produção. Exemplo? As discriminações de gênero. No interior do próprio meio
LGBT, sigla que unifica universos bem distintos, há discriminação de classe. Há
machismo no interior da Esquerda (alguém disse que certo deputado de um partido
da esquerda teve “culhão” na votação da Câmara). Muitos adeptos de religiões
afro-brasileiras apoiaram as mesmas posições que congressistas da chamada
“bancada evangélica” no episódio da votação do impeachment.
A luta no campo da cultura requer
estratégias e táticas diversas daquela do campo político estrito senso
(política partidária), embora os itens de sua agenda devam estar presentes nos
programas dos partidos da esquerda e as reivindicações devam ser levadas às
instâncias do poder (foi assim no processo constituinte). Ela requer,
sobretudo, a mobilização dos diferentes movimentos e coletivos, mas é
imperativo que as ações sejam de caráter praxiológico e não reativo: pensar e
repensar as agendas das diferentes lutas no campo cultural é imperativo no
Brasil contemporâneo.
Resistência aos
conformismos impostos por uma ideologia dominante que tenta, via antecipação do
gozo de cada um, ditar todas as regras do jogo. A psicanálise em sua aparição
clínica, não menos importante, neste ensaio que propomos engendra o seu ato com
o discurso de classe dos movimentos sociais.
Uma frente para disputar as ruas, hoje orquestradas pelas políticas de
uma bancada de balas, conservadora no seu fazer. É possível que não consigamos
enfrentar todos os desafios numa única frente. Falharemos e destas falhas,
retornaremos. A construção de um espaço de estranhamentos para uma aproximação
com o debate de conjuntura política atual.
Em relação ao preconceito, a Antropologia e a Psicanálise , assim como a História
e a Filosofia, cumprem um papel decisivo: o de ser a contrapartida, força contra hegemônica, da socialização
conservadora que ainda é dominante.
Ainda há muito a fazer, ainda há tudo
a fazer. Se
não nos deixarem sonhar, nós não os deixaremos dormir.